sábado, 29 de março de 2014

Sobre o politicamente correto

Sobre o politicamente correto

Se não faz sentido, discorde comigo, não é nada demais...
Capital inicial

Numa dessas discussões intermináveis de Facebook sobre polêmicas sociais recebi alguns comentários taxando como “sensibilidade exacerbada” das pessoas diante de uma propaganda explicitamente machista. Para tal, respondi que não conseguia ver como negativa uma profunda e séria mudança de postura sobre as questões de grande relevância para a evolução da humanidade. Qual não foi a minha surpresa quando li uma reafirmação da noção de que isso era sim, negativo, justificando que reconhecer a discriminação nas palavras da propaganda da referida loja de roupas para mulheres de Teresina era uma forma de deixar as emoções dominarem, ou seja, abandonar a razão com possibilidade de cometer uma injustiça em nome do “politicamente correto” e deixando a entender que as piadas do “politicamente correto” eram hipócritas e que se autorizavam em nome do mesmo, quando tentávamos unicamente mostrar a fragilidade da propaganda.

Algo profundamente curioso é que em momento nenhum o comentador negou o machismo da propaganda para, assim, justificar seu argumento. Ele simplesmente responsabilizou os homens e mulheres que se ofenderam, acusando-nos de “sensíveis”! Mas o que me chama atenção nesse tipo de comentário é que a pessoa obviamente sabe que este é um mundo segregado, a tirar pelos outros comentários que fez exemplificando outras minorias que não as mulheres. Ele critica que as pessoas se tornem sensíveis demais a essa segregação, dando pouca relevância ao que gerou a indignação das pessoas. Quer dizer, “seja motivo de gozação, mas não se ofenda porque foi piada”. A pessoa ataca as supostas falhas na minha fala com um discurso essencialmente injustificável. Piada ofende. Algumas piadas são exatamente o exemplo da injustiça. A comédia sempre falou nada mais, nada menos, que da condição humana em suas contradições. Eis uma das bases do que entendemos como engraçado. Mas humilhação não é engraçado. A discriminação não foi menor porque foi em forma de propaganda ou piada, ao contrário, ela foi massiva.
Mas o que me obrigou a escrever esse texto foi o uso pejorativo do termo “politicamente correto”.

É graças ao politicamente correto que estou sentada confortavelmente em frente a um computador, alfabetizada e não amontoada com outras pessoas em alguma senzala. Como mulher, negra, filha de pobres, é por causa do politicamente correto que eu tenho hoje meu registro profissional. Porque as pessoas lutaram nesse país pelo politicamente correto, posso dizer essas ideias sem que as pessoas da minha família sejam acordadas no meio da noite e tenham nossa casa revirada... pelo próprio governo! E me sinto especialmente tocada por essa questão porque a minha profissão foi especialmente perseguida durante o governo militar nesse país, e seu ensino tirado das escolas. E nós paramos? Não. Não fiz parte daquela geração que ajudou a tornar insustentável o aquele estado de coisas politicamente degradante, mas faço questão de não estar imóvel sabendo que muito ainda tem que ser melhorado, extinguido, transformado, e por isso digo nós.

Se me perguntarem se tenho algum problema com o politicamente correto, direi sem dúvida que NÃO. Para mim, o politicamente correto deu condições de vida digna para a maioria das pessoas. Não falo de tornar a sociedade mais rica ou coisa assim. Falo de algo muito mais essencial como dar direitos aos trabalhadores que derramavam seu suor dezesseis horas por dia em uma firma. E tem mais: o ideal não é que as mulheres não precisem se ofender com essas atitudes, mas que elas não aconteçam por não haver razão de ser. Lutamos é pelo dia em sejam bizarras essas propagandas, mas isso não virá sem remarmos contra a maré. E o fato de a maré estar cada dia mais a favor irrita alguns.

Dizer que as minorias exageram não é apenas mentiroso, é pretender convencer de que as pessoas que tentam tornar a vida dos brasileiros um pouco mais cidadã, são as vozes da opressão. Essa tentativa é inútil, e ridiculariza quem a faz, pois todo momento político tem questões a serem elaboradas pela própria sociedade. Ela implica tomar as exceções pela regra e tentar deseducar querendo tornar menor o sofrimento, claro, dos outros, que é sempre mais brando.
Se alguém me disser que emoção impossibilita a racionalidade humana, tornando o ser incapaz de criar, gerar conhecimento e melhores condições sociais, vou dizer que essa pessoa não conhece a si mesmo, nem a forma como sua espécie se desenvolve. Pois vou contar uma novidade: o mundo em que moramos já tomou como sérias e racionais as pessoas que se comovem com as mazelas sociais. Ironicamente, muitos dos povos considerados muito racionais por alguns, especialmente pela mídia, são os mesmos que diminuíram suas desigualdades, criminalizando a sua prática, e tendo a pensar que não fizeram isso por que os discriminados ficavam felizes e passivos diante da discriminação.  E o pior, quem pode dizer que essa discriminação sumiu lá? Isso justifica parar de se ofender com ela?

Quando trabalho para sensibilizar as pessoas sobre as questões de gênero não faço nenhuma questão de que deixem de lado seus sentimentos, nem quando ensino teorias, que quase sempre é o mesmo trabalho. Apenas os psicopatas agem sem emoção e isso ainda é relativo. Politicamente as coisas DEVEM ser corretas.

Mas infelizmente, criminalizar as minorias é próprio do processo histórico. Na época da proclamação da república existiam os imperialistas, na época da abolição da escravatura existiam os escravistas. Hoje os manifestantes são chamados de vândalos e existem os que pensam que se pronunciar contra uma piada machista é irracional. 

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